quarta-feira, 27 de agosto de 2008

O neocolonialismo - Texto de Eça de Queirós

UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
Departamento de História
História Contemporânea
Prof. Luiz Arnaut
Textos e documentos
Estranha gente, para quem é fora de dúvida que ninguém pode ser moral sem ler a Bíblia, ser
forte sem jogar o críquete e ser gentleman sem ser inglês!
E é isto que os torna detestados. Nunca se fundem, nunca se desinglesam. Há raças fluidas,
como a francesa, a alemã, que, sem perderem os seus caracteres intrínsecos, tomam ao menos
exteriormente a forma da civilização que momentaneamente as contém. O francês no interior da
África adora sem repugnância o manipanso, e na China usa rabicho. O inglês cai sobre as idéias e as
maneiras dos outros como uma massa de granito na água: e ali fica pesando, com a sua Bíblia, os
seus clubes, os seus sports, os seus prejuízos, a sua etiqueta, o seu egoísmo – fazendo na circulação
da vida alheia um incomodativo tropeço.
É por isso que nos países onde vive há séculos é ele ainda o estrangeiro.
E isto torna-os fatais como domadores – porque todo o seu esforço consiste em reduzir as
civilizações estranhas ao tipo da sua civilização anglo-saxônica. O mal não é grande quando eles
operam sobre a Zululândia e sobre a Cafraria, nessas vastidões da Terra Negra, onde o selvagem e a
sua cubata mal se distinguem das ervas e das rochas, e são meros acessórios da paisagem: ai
encontram apenas uma matéria bruta, onde nenhuma anterior forma de beleza original se estraga
quando eles a refundem para fazer à sua imagem. Vestir o desventurado rei negro Cetevaio como
eles agora fizeram de coronel de infantaria; obrigar os chefes dos Basutos a saber de cor os nomes
da família real inglesa, são talvez atos de feroz despotismo, mas não deterioram nenhuma primitiva
originalidade de linha ou de idéia. Para Cetevaio, que andava nu, uma fardeta, mesmo de infantaria,
não faz senão vesti-lo; e é indiferente que dentro do crânio dos Basutos haja só fórmulas de
invocação ao manipanso, ou também nomes de príncipes da Casa de Hanôver.
Mas quando eles trabalham sobre antigas civilizações como a da Índia, onde existem artes,
costumes, literaturas, instituições, em que uma grande raça pôs toda a originalidade do seu gênio –
então a política anglo-saxônica repete pouco mais ou menos o atentado sacrílego de quem
desmantelasse um templo búdico belo como um sonho de Buda, para lhe dar na sua reconstrução as
linhas hediondas do Stock Exchange de Londres; ou ainda de quem se fosse ao mármore divino da
Vênus de Milo e tentasse, à força bruta de martelo e cinzel, dar-lhe o feitio, as suíças e a
sobrecasaca de Lord Palmerston!
Eça de Queirós, Cartas de Inglaterra.

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